Saravá, Seu Zé Pelintra


Zé Pelintra da Umbanda foi o primeiro santo verdadeiramente brasileiro. Ele levou a filosofia e as estética da antiga malandragem carioca para o mundo religioso. Seu poder extrapola as fronteiras de um só credo, ele recorre à magia indígena para a cura, ao baralho cigano para ler o futuro, aos passes Kikongo-Angola para descarregar o corpo e ao "axé" do Candomblé para abrir caminho nas encruzilhadas entre a vida e a morte.


O Rio de Janeiro é hoje uma das cidades mais violentas do mundo. A violência é sem dúvida consequência das condições de vida degradantes às quais a maioria da população está exposta: empilhada nos morros, nas favela ou ainda dispersa em pequenos grupos acampados em praças ou sob viadutos. Em meio a este insólito e aparentemente intransponível momento, as religiões aparecem como bálsamo, saída, promessa ou recarga energética para suportar o tranco do dia a dia. Entre eles, uma das mais populares é a Umbanda.


Além de oferecer tudo que as outras religiões oferecem, a Umbanda trabalha com a cura. Para isso ela abarca um amplo espectro de conhecimento: a medicina milenar trazida pelos ancestrais africanos (tanto os grupos bantos como sudaneses); a farmacopeia de ervas nativas, conhecidas e empregadas pelos índios em rituais de pajelança; e a tradição das prescrições mediúnicas presentes no Espiritismo desenvolvido por Alan Kardec. Desde a sua criação em 1908, e em constante mutação, a Umbanda tem-se espalhado, incorporando principalmente elementos da antiga Macumba, do Candomblé, bem como do Catolicismo, entre outros.

Nesse ambiente miscigenado surgiu o culto a Zé Pelintra, um nordestino negro que se tornou o carioca típico. Trata-se de um temperamento violento mas incapaz de atacar uma mulher, um espírito que volta à Terra para reviver a boemia, por isso tudo um "santo" à moda da casa.


SARAVÁ, SEU ZÉ PELINTRA!
Segundo o Dicionário de Cultos Afro-brasileiros, de Olga Gudolle Cacciatore, a palavra saravá é uma corruptela de salvar; saudar. Nesses tempos cruéis em que vivemos, SARAVÁ! virou um grito de guerra, uma chave mágica para os que não tem acesso a interpretações semânticas.


A magia também é usada na Umbanda: para resolver demandas de justiça, desentendimentos e lutas. Ajudar nas querelas ligadas ao dinheiro ou ao amor faz parte da caridade oferecida pelas entidades (espíritos), através de seus "cavalos" (médiuns). Forte aliado dos necessitados, Zé Pelintra é um dos espíritos mais queridos na Umbanda. Ele é invocado para trazer sua malandragem, sua magia, sua ginga, para ajudar o povo a vencer. Existem várias formas de reconhecer Seu Zé: através do pontos cantados (cantiga) ou riscados (sinais gráficos). Na Umbanda, os pontos podem ser entendidos como formas de invocação.


CASAMENTO ENTRE O CANDOMBLÉ E A MACUMBA
O ponto cantado e o ponto riscado são uma tradição trazida pelos negros bantos. No Rio de Janeiro, no começo do século XX, os diversos rituais dos grupos bantos foram chamados genericamente de macumba. Em todos os rituais a presença da música e da dança era constante e fundamental. A música é em si uma manifestação divina de acordo com a tradição Kikongo. As canções dos ancestrais desse povo, transplantadas para o novo continente, se misturam ao idioma português, adquirindo o nome de ponto cantado. Desenhado com giz (pemba) no chão, o ponto riscado marca no espaço físico do terreno o símbolo da entidade que se evoca. Inicialmente o giz era preparado com argila branca e sal, simbolizando a pureza do fundo da terra e do fundo do mar. No Brasil a tradição dos pontos riscados e cantados desdobrou-se em uma enorme variedade, conforme a criatividade e grau de iniciação dos "pais" e "mães-de-santo".



A influência do Candomblé, fundado na Bahia por negros Gegês e Nagôs (sudaneses), se fez sentir no Rio de Janeiro, principalmente após a libertação dos escravos, em 1888, quando aumentou a migração de nordestinos para a antiga capital do País. Na Bahia, observamos uma hegemonia dos grupos sudaneses sobre os bantos (Kikongo-Angola). Mas no Rio, as duas tradições se amalgamaram. O encontro harmônico das duas religiões de diferentes grupos - Candomblé (sudaneses) e Macumba (banto) - aparece claramente na Umbanda, que surgiu como uma religião brasileira e ecumênica (leia mais sobre isso aqui).


Esse casamento simbólico de Candomblé com a Macumba é exemplificado magnificamente pela união do Exu-Elegba com a Pomba-Gira. Ele, proveniente das terras de Daomé (gege) e do reino Iorubá (nagô), passando pela Bahia, é representado muitas vezes simplesmente como um falo ereto. Sua contraparte feminina no altar da Umbanda é a brasileira Pomba-Gira, o princípio feminino-sexual-ativo, chamada anteriormente de Bombozira de acordo com a tradição Kikongo-Angola.


Esse princípio místico da sexualidade, presente nas religiões africanas vindas para o Brasil, é quase sempre identificado com o Mal. Senso de liberdade anárquica e instinto de gozo pleno da vida são características básicas das entidades que representam esse princípio. As religiões africanas foram severamente combatidas pela catequese cristã justamente por isso, e então identificadas com "coisa do demônio". Para a Igreja, o diabo se configurava em Exu.

A encruzilhada é, de acordo com a tradição gege-nagô, o território de Exu-Elegba.. O grande Orixá, senhor do tempo e dos espaço; rege as intersecções entre a vida e a morte; o dia e a noite. Sua hora é aquela onde os ponteiros se cruzam: meia-noite e meio-dia. Como mensageiro entre os demais Orixás e os humanos, Exu tornou-se também senhor da comunicação, estando presente, portanto, nas "encruzilhadas verbais", distinguindo o falso do verdadeiro.


Na Umbanda encontramos apenas sete dos Orixás originais do panteão gege-nagô: Oxalá, Iemanjá, Ogum, Iansã, Xangô, Omulu e Oxóssi. Dessa forma, Exu não é conhecido como um Orixá, e a sua sincretização com o diabo católico é bastante explícita. O seu lado mundano, sexual, brincalhão e amoral é super-evidenciado. No Candomblé as suas imagens são feitas de montes de terra esculpidas com olhos e bocas de búzios, ou mesmo estátuas com chifres de ferro batido. Mas as imagens da Umbanda são vermelhas, alegres, risonhas, mefistofélicas, verdadeiramente teatrais.

Exu praticamente não é incorporado no Candomblé, tamanha é a sua concentração de energia; já na Umbanda é frequente a sua manifestação - onde é considerado Egum (espírito de alguém que já viveu na Terra). Alguns deles já evoluíram e não reencarnarão mais. Então são considerados chefes de legiões ou falanges de exus formados por outros espíritos (Exu Marabô, Tranca-Ruas, Exu Tiriri, etc). Mas apenas um desses exus possui nome próprio e apelido: Exu Zé Pelintra.



ZÉ PELINTRA, ETERNAMENTE BOÊMIO
Zé Pelintra, Zé do Norte, Zezinho ou Zinho, foi em vida um nordestino. Alguns o dizem natural de Pernambuco (da cidade de Exu), outros, da Paraíba, e alguns mais, de Alagoas. Uma coisa é certa: Zé veio do catimbó, conhecida prática de feitiçaria, descendente de rituais bantos e indígenas mesclados com a magia trazida pelos colonizadores portugueses. Dizem, que Zé trabalhava no Catimbó do Mestre Carlos, em Caruaru, onde se formou nas artes da feitiçaria. Muitos foram os médiuns que trabalhavam com Zé no Catimbó e que vieram para o Rio de janeiro, passando a trabalhar em centros de Umbanda e trazendo Zé Pelintra consigo.

Difícil precisar o surgimento da sua figura no Rio, bem como a época em que se tornou o símbolo do malandro carioca com o seu terno branco, chapéu panamá, cravo-vermelho na lapela, sapato bico-fino com duas cores, sempre segurando uma bengala. Já que essa caracterização surgiu nos Anos 1920, podemos deduzir que a partir daí o nosso personagem começou a habitar as ruas da Lapa - um dos pontos prediletos da alta malandragem carioca. Nesse ambiente, Zé se sofisticou, a valentia do sertão abriu espaço para uma alma boêmia se manifestar. Tornou-se dançarino de gafieira, seresteiro e sambista.


Zé integrou o samba ao seu universo. As festas organizadas para ele nos terreiros levam o nome de "pagode". Nestas ocasiões, é comum vê-lo comer e divertir-se junto das suas pombas-giras prediletas: Maria Navalha, que vivia na beira do cais; Estrela, que reinava nos botequins; e Ana Bolero, dos antigos dancings e cabarés da Lapa. Todas elas de temperamento agressivo, trabalhando com ginga na viração, na noite, trazendo alegria e prazer para o mundo dos marginais. Neste ambiente, Seu Zé passou a ser um gentleman e um protetor; e, no imaginário feminino, um animus romântico e sedutor.


A arte de jogar, o amor ao lúdico e a capacidade de enganar os outros com brincadeira são características de Exu-Elegbara que Seu Zé incorporou definitivamente. Ele tem seu próprio método de ler a sorte nas cartas. É também o guia espiritual de quem vive do jogo. Dizem, que uma vez manifestado, Seu Zé comporta-se do mesmo jeito que nos tempos em que era vivo: é malandro, ri de lado, não bebe a cachaça toda, joga um pouco no chão e adora uma cerveja (bem) gelada.
Zeca Ligiéro


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