Conheça a verdadeira história de São Jorge, o santo guerreiro chamado Ogum


No Brasil ele está presente nos altares das igrejas, nos congás da umbanda, nos nichos domésticos, na fachada das casas e no interior de oficinas mecânicas. Para fazer jus a tamanha popularidade, São Jorge conquistou os corações dos reis portugueses, de seus súditos mais humildes e fez com eles a travessia do Atlântico. No entanto, alguns dizem que foi cassado pela Igreja porque sua luta contra o dragão não passa de uma fábula. Outros dizem que perdeu o seu posto Celeste porque se misturou com os orixás nas casas de santo do Brasil. Na verdade, continua santo oficial do catolicismo.


Segundo Georgina Silva dos Santos, professora de História da Universidade Federal Fluminense, São Jorge nunca foi banido do rol dos santos católicos. Ao contrário, a história de sua devoção é marcada por um incessante esforço eclesiástico para reconhecer-lhe a santidade. São Jorge não teve somente uma hagiografia, isto é, apenas uma biografia oficialmente reconhecida pela Igreja. A narrativa original de sua vida sofreu várias adaptações desde que o seu culto deixou o Oriente Próximo e chegou à Europa no século VI.


Um dos relatos mais antigos do seu martírio tem como base os fragmentos de um texto grego. Foi escrito por um discípulo do "mestre Jorge" e remonta ao século V. Narra os tormentos sofridos pelo santo após declarar-se cristão perante o imperador dos persas. Segundo a lenda, por recusar-se a oferecer sacrifícios aos ídolos pagãos, São Jorge foi torturado com marteladas no crânio. Para confortá-lo, o Senhor apareceu e revelou-lhe que haveria de morrer e reviver três vezes antes de falecer realmente. O mártir suportou calçados com pregos pontiagudos, os talhos de uma roda com gládios e a voracidade das aves de rapina, exatamente como o Prometeu Acorrentado da mitologia grega. Entre uma ressurreição e outra, restituiu a saúde de um animal de tração de um lavrador, intercedeu por uma viúva aflita, curando o seu filho doente e batizou 400 mortos após ressuscitá-los.


Apesar de tantos milagres a indefinição de sua identidade e a imprecisão quanto às circunstâncias de seu martírio dificultaram reconhecimento da autenticidade desta lenda e das variantes que a antecederam. Em 325, o Concílio de Nicéia já havia considerado todas as narrativas sobre São Jorge como apócrifos, ou seja, relatos que não obedeciam ao Cânon das Escrituras. A crença no poder de suas relíquias e a construção de santuários em seu louvor, entretanto, falaram mais alto. Seu culto, enraizado nas cidades mediterrâneas e nas vilas do Norte europeu, estimulou a produção de um novo relato capaz de justificar sua devoção.


A segunda versão do martírio de São Jorge, composta em 916, baseia-se na narrativa anterior, mas a supera em precisão histórica. O relato apresenta o como um tribuno do exército imperial natural da Capadócia, hoje parte da Turquia, que se recusou a fazer oblações aos deuses diante do senado e do exército. Segundo a narrativa, a desobediência provocou a ira do imperador Diocleciano, que ordenou sua prisão. Sendo nobre e rico, São Jorge doou todos os seus bens aos pobres e deixou-se conduzir ao cárcere, onde foi submetido a torturas atrozes. Um anjo do Senhor, no entanto, libertou-o de todos os suplícios. O santo suportou uma roda cheia de gládios, saiu ileso de uma fossa de cal e não se feriu ao andar sobre o fogo. Conta-se que, a cada prova superada, São Jorge operou milagres. Trouxe um morto à vida e salvou o único boi do camponês Glicério. Maravilhados com o poder do mártir, os soldados algozes e a própria imperatriz Alexandra aderiram à fé cristã. Inconformado, Diocleciano condenou-o à decapitação.


Escrita num tempo em que o catolicismo já se impunha como religião oficial do Ocidente, essa versão hagiográfica tornou os  atos de São Jorge verossímeis ao suprimir a descrição hiperbólica de seus milagres, ao nomear seus beneficiários e aos situá-lo entre os mártires da sangrenta perseguição aos cristãos promovidas por Diocleciano em 303. Embora ancorada em um perfil caridoso, caro ao conceito de santidade vigente na Idade Média, não foi esta narrativa que serviu de esteio à construção da imaginária de São Jorge. O episódio em que o santo enfrenta um dragão tomou a dianteira.

O principal agente na disseminação dessa imagem foi a Legenda Áurea coletânea hagiográfica realizada por Jacopo de Varazze, arcebispo de Gênova (1236-1298). A obra, amplamente utilizada como fonte pelos jograis, descreve o martírio de São Jorge e remete-o ao ano de 287, portanto ao reinado de Diocleciano. Mas insere no registro do santo o combate em que o guerreiro da Capadócia enfrenta o monstro mitológico.


Conta a Legenda que, além das muralhas da cidade de Lida, vivia um dragão que aterrorizava a população. Para mantê-lo sob controle, era-lhe oferecido diariamente um animal. Ao fim de um período, os rebanhos esgotaram-se. O rei, então, ordenou que a cada dia um habitante designado por sorteio, fosse levado à fera. Certo dia, a sorte apontou a filha do rei. Levada aos arrabaldes da vila, a princesa entregou-se às lágrimas. São Jorge cavalgava pelo lugar quando avistou a jovem. Disposto a oferecer-lhe ajuda, parou para indagar-lhe o motivo de seu pranto. Enquanto a donzela tentava persuadi-lo a deixar o local, o dragão precipitou-se sobre o santo. São Jorge dominou-o com sua lança, amarrou-o com o auxílio da princesa e conduziu-o até a cidade. Diante dos moradores, o herói prometeu matar a fera se todos aceitassem o Evangelho. Grata, a população converteu-se ao cristianismo e deixou-se batizar. Antes de partir, São Jorge pediu à princesa que zelasse pela fé cristã e cuidasse dos pobres. Conta-se que em honra a São Jorge e à Virgem Maria, o soberano mandou erguer ali duas pequenas igrejas. Consta que, próximo às ermidas, surgiu uma nascente e todos que daquela água beberam viram-se curados. 

Montado em Pégaso, o herói Perseu aniquila o monstro marinho

A data e o autor dessa lenda são desconhecidos. Mas é inconteste sua semelhança como mito grego em que o herói Perseu e seu cavalo alado, Pégaso, salva a princesa Andrômeda de um monstro (veja a imagem acima). Também a inegável seu parentesco com a hagiografia de outros santos medievais, como São Marcelo, centurião do exército romano, que também enfrenta um dragão para defender Paris. Não surpreende que este relato, ancorado em um modelo masculino consagrado, tenha caído no gosto dos cavaleiros e camponeses. Retratado como um guerreiro intrépido, vitorioso e santo, São Jorge cristalizou a imagem de defensor da fé cristã e de protetor de gentes e territórios, eliminando distâncias entre o topo e a base da sociedade. Não espanta que tenha embalada o movimento da reconquista da península Ibérica contra o Islã. A cruzada deu origem a reinos cristãos e selou uma união, entre o mártir e os monarcas lusos, que teve vida longa em Portugal e no ultramar.


Mas, se São Jorge supria a demanda dos reis e dos exércitos, ajudando-lhes a forjar uma estampa de glória e conquista, no meio do povo logo se tornou advogado de causas cotidianas, com a ajuda dos orixás. Como enfrentara, num passado longínquo, desafios semelhantes aos de Prometeu, Perseu e São Marcelo, São Jorge também assumiria os de Ogum e os de Oxóssi dos cultos afro-brasileiros.

A estatueta representa um líder militar da Nigéria. As figuras de cavaleiros, que lembram a formação de estados Ioruba, possivelmente ajudaram os escravos no Brasil a associar o santo guerreiro com orixás 

A função medianeira, as habilidades e conhecimentos no trato sobre certa matéria aproximavam santos e orixás. Se os primeiros eram intermediários entre os homens e o Criador do credo católico, os últimos desempenhavam o mesmo papel entre os homens e Olorum - o ser supremo no culto afro-brasileiro. Enquanto os atributos dos santos indicavam o exercício de seu antigo ofício, a aptidão para a cura de uma doença ou a resolução de um problema, os símbolos dos orixás revelavam do mesmo modo sua suas propriedades curativas e materiais. O processo cultural de identificação, associação e inversão que caracterizaram o sincretismo religioso entre São Jorge e os orixás da guerra e da caça construiu-se sobre o caráter múltiplo das divindades africanas e as variantes hagiográficas de São Jorge, um santo de "canonização literária".


Omitido das procissões brasileiras do Corpo de Deus, o combate entre o santo e o dragão circulava, porém nas imagens votivas. O mártir era tido e havido como o herói que, na floresta, abateu com sua lança uma fera, tal e qual Oxóssi, rei de Ketu, deus da caça, ligado à terra virgem e a lua. O orixá cuja dança descreve sua perseguição ao animal até o disparo de sua flecha. São Jorge sincretizou com Oxóssi na Bahia, e não com Ogum. Ali, foi com Santo Antônio que Ogum se mesclou, porque fora evocado como defensor da cidade, durante as invasões holandesas do século XVII. As vitórias resultaram em um soldo municipal para festa de Santo Antônio, mas renderam a lua a São Jorge e no futuro uma das mais belas músicas do cancioneiro brasileiro - Lua de São Jorge - de Caetano Veloso.


A conjuntura histórica, a variedade de nações africanas e o isolamento dos centros urbanos no passado imprimiram variações regionais e, muitas vezes, distinções entre os terreiros da mesma cidade. São Jorge sincretizou com Ogum nas casas de santo do Recife, de Porto Alegre e do Rio de janeiro. Na capital do Império, onde o desfile imponente de São Jorge era uma atração à parte e o santo recebia o soldo de um general, seus atributos de guerreiro conduziram-no ao encontro de Ogum, o rei iorubá de muitas faces, que inventava suas próprias armas e ferramentas. Guerreiro invencível, em sua dança Ogum agita a espada, como se fosse golpear um inimigo ou abrir os caminhos. Reza a tradição que ele o fez: ensinou os homens a dominar o fogo e a fabricar os utensílios de ferro.


Reprimidos pela Igreja e mesmo pela polícia, os cultos afro-brasileiros encontraram na devoção aos santos enorme abrigo. Não era raro que escravos ou libertos de uma irmandade figurar sem entre os integrantes dos terreiros de umbanda. O folclórico Dom Obá II d'África, ex-combatente da Guerra do Paraguai e amigo pessoal do Imperador Pedro II, era um deles. Dizia-se católico, mas não via muros entre uma religião e outra. No retrato que mandou publicar na imprensa, em 1882, fez incluir os símbolos de Ogum e Oxóssi, declarando sua linhagem. E costumava dizer: "no Brasil, São Jorge é Ogum".


Priom
Mestre Interior
Meu nome é Priom e permaneço em processo constante de conhecimento sobre mim mesmo, sobre o mundo e sobre as relações humanas. Compartilho aqui conteúdos apurados  sobre Numerologia, Astrologia, Espiritualidade e religião. Saiba mais sobre mim e o blog aqui.

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