Um conhecido grupo baiano dizia que quando tocava deixava todo mundo pulando que nem pipoca. Verdade. O som exerce sobre nós o poder de transformação. Quem nunca pulou e sorriu ao cantar uma música contagiante?
Sempre haverá uma oportunidade para nos aprimorar ou
modificar alguma coisa no nosso comportamento. O tempo muda e sempre nos
oferece momentos para olhar com mais atenção às coisas que ainda desconhecíamos
em nós mesmos. Muitas vezes fracassamos porque teimamos buscar a felicidade nos
lugares errados. Fomos criados com a crença de que a felicidade está do
lado de fora e que pode - em muitos casos - ser comprada. A felicidade está dentro de nós e ela não depende daquilo que temos ou somos. Quando passamos a
descobrir isso passamos por transformações internas - esse é o segredo da felicidade!
Grandes transformações acontecem quando passamos por
situações limites, afirma o escritor, professor, teólogo e psicanalista Rubem Alves, no seu
livro O Amor que Acende a Lua (editora Papirus). No texto que compartilho abaixo chamado "A Pipoca", Rubem
escreve sobre o difícil processo de transformação. Sim, é difícil entendermos esse processo que nos causa insatisfações. Mas de onde vem tanta insatisfação? Acreditamos que ganhamos
pouco, não temos um bom emprego, que não temos tudo que merecemos... Olha, é difícil
perceber, mas o processo de transformação começa dentro de nós. Sabe por quê? Somos
sementes, somos milho, somos pipocas! Eu adoro essa comparação. Temos que ter coragem para admitir o que
queremos para nossa vida e pular, mover em direção ao que nos dá entusiasmo. Leia carinhosamente o texto abaixo e decida se você quer ser pipoca ou piruá.
"A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até
atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com
as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me
a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as
mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho
de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.
Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação
sobre o filme A Festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de
feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo – porque a
culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a
minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em
que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A
pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples
molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas.
Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E
algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar
como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de
pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma
inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um
extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu
pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma
panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem
sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos, são o pão e o vinho,
que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria
(porque vida, só vida, sem alegria, não é vida…). Pão e vinho devem ser bebidos
juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que
aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a
comida sagrada do Candomblé…
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu
agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas
espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é
que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir
com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve
alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o
fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo
fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém
jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar,
saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que
acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores
brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se
transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa,
brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É
muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a
transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação
porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O
milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois
do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para
comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra
coisa – voltar a ser crianças!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de
pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos
pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São
pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que
o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo
é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser
fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego,
ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão –
sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o
fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande
transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá
dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De
dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino
diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca
não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do
fogo, a grande transformação acontece: pum! – e ela aparece como uma outra
coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta
rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está
representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do
milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre
e transforma-te!" – dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os
piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns,
inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente.
Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento
da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo
William, extraordinário professor-pesquisador da UNICAMP, especializou-se em
milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com
certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da
poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas piruá é o
nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos
quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás
é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se
recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que
o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida
perdê-la-á." A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não
estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se
transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o
estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem
para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a
ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira…"
Gostei!!!
ResponderExcluirNão quero ser Piruá....quero ser pipoca.
Beijão.