Santo Antônio, São João e São Pedro: é hora de pular a fogueira
As festas católicas normalmente transitam em torno dos
eventos da Paixão e Ressurreição de Jesus Cristo; do culto aos santos e da
adoração a Virgem Maria. Mas o que nunca atentamos, foi que as festas juninas
possuem fundamentos nas celebrações indígenas e africanas. Do cruzamento entre
essas duas culturas, surgiu um evento festivo fortemente ligado à
identidade nacional.
Segundo a antropóloga Elizabeth Cristina de Andrade Lima,
professora da Universidade Federal de Campina Grande, é unânime a versão de que
as festas juninas foram transportadas da Europa e trazidas ao Brasil pelos
portugueses em meados do século XVI. Foi a partir daí que os religiosos
portugueses usavam as festividades cristãs para passar o ideário da doutrina da
Igreja aos índios.
Um dos primeiros relatos sobre essas comemorações é de
autoria do padre Fernão Cardim, que numa missão jesuítica entre 1580 e 1590,
constatou o gosto dos próprios nativos pelos festejos: "Três festas
celebram esses índios com grande alegria, aplauso e gosto particular. A primeira
é as fogueiras de São João, porque suas aldeias ardem fogo, e para saltarem as
fogueiras não os estorva a roupa ainda que algumas vezes chamusquem o
couro".
Inicialmente as comemorações não tinham um formato como hoje
conhecemos. Com o tempo os festejos sofreram um processo de hibridismo
cultural: a comida foi modificada, danças e músicas incluídas. Hoje elas são
festejadas nas cidades independentemente da ligação canônica. Transformadas em
grandes espetáculos as festas juninas cresceram, principalmente nas cidades
nordestinas, onde dura o mês inteiro.
Entre os estudiosos impera a interpretação de que as festas
juninas correspondem exatamente ao período do solstício de verão europeu, que
no caso do Brasil acontece no solstício de inverno. Seria uma reminiscência de
antigos cultos pagãos: cerimônias dedicadas ao fogo, que serviam para afugentar demônios e qualquer outra espécie de agouro, bem como propiciar a fertilidade e a
purificação da vegetação, garantindo assim a provisão de alimentos. No discurso
cristão, o fogo e a fogueira seriam uma referência à comemoração do nascimento
de São João Batista.
As festas juninas são apresentadas pelos folcloristas como eventos
repletos de magia presságios e sortilégios. E também de amor e erotismo. São
João, o mais querido entre todos os santos do ciclo junino, tem a sua fama e
título de "santo casamenteiro" - atributo este também dirigido a
Santo Antônio. É à ele que as moças casadoiras se dirigem na véspera de sua
noite, 23 de junho, para pleitearem um matrimônio.
O fogo é um dos principais símbolos da festa, elemento mágico e purificador
particularmente representado pelas fogueiras acesas na véspera dos dias em que
se comemora o nascimento dos santos juninos - Santo Antônio (12), São João (23)
e São Pedro (28):
SANTO ANTÔNIO
Era um padre franciscano que viveu no século XII.
Considerado "casamenteiro", teria ficado muito famoso por ter ajudado
a donzelas a conseguirem o dote.
Primo de Jesus, foi ele quem iniciou o ritual do batismo e
batizou Cristo no Rio Jordão. É conhecido no Nordeste do país como o "protetor
dos casados e dos enfermos". É representado nos estandartes como um menino
segurando um carneiro (signo de Áries, fogo); referência à doutrina de que ele teria anunciado ao
mundo a chegada do cordeiro de Deus.
SÃO PEDRO
Foi pescador, apóstolo e primeiro Papa. Protetor dos
pescadores, tem a fertilidade associada à ele no sentido da fartura.
QUAL A ORIGEM DA FESTA JUNINA?
No Hemisfério Norte os povos medievais realizavam festas, em
junho, durante o solstício de verão. Comemoravam o brilho do Sol que iluminava e
fecundava a terra. A Igreja se apropriou das festas e deu a elas novos
significados.
OS TRAJES TÍPICOS DA FESTA
O estereótipo do caipira desdentado e mal trajado foi criado baseado no personagem "Jeca Tatu", do escritor Monteiro Lobato na obra Urupês. Antes disso, todos trajavam a melhor roupa - não necessariamente luxuosa - mas confeccionada para a ocasião.
AS COMIDAS TÍPICAS
Historicamente estão relacionadas com a produção agrícola da
época da festa. Mas os pratos sofreram hibridismo cultural. A pamonha, por
exemplo, é de origem escrava. E a presença da espiga de milho é indígena e representa simbolicamente os pingos de ouro, a fartura e o brilho dourado do sol.
POR QUE A TRADIÇÃO DE ACENDER FOGUEIRAS?
O fogo é o principal elemento junino. Coincidentemente, os povos pagãos acendiam fogueiras para espantar os maus espíritos das colheitas. Já os cristãos o faziam para homenagear os três santos e, para cada um deles, era montada uma fogueira formatada em um desenho especial: a) as montadas com troncos imitando uma pirâmide; b) as que subiam aos céus com os troncos milimetricamente apoiados uns aos outros; e 3) as fogueiras cujos os troncos se sustentavam em si mesmo. Veja cada uma delas abaixo.
AS FOGUEIRAS PIRAMIDAIS
Símbolo do amor, elevação ao céu. Seu formato lembraria o culto cananeu à deusa Astarte para trazer a fecundidade. É ligada a São Pedro.
AS FOGUEIRAS QUADRADAS
Seu formato angular (e perfeito) se refere ao conforto de um abrigo. Simboliza a perpetuação e a segurança das espécies. É ligada a Santo Antônio.
AS FOGUEIRAS CIRCULARES
Seu formato lembra o movimento cíclico. Simboliza o apoio, a união fraternal e as mudanças impostas pelo tempo.
POR QUE PULAR AS FOGUEIRAS?
O mito da fogueira foi certamente uma maneira que o
cristianismo encontrou de redefinir os ritos. Várias explicações são fornecidas
para o costume de acender as fogueiras, mas nem todas recebem adesão entre os
folcloristas.
Segundo
James George Frazer, antropólogo evolucionista do final do século XIX, "o
costume de acender grandes fogueiras e saltar sobre elas" era comum
praticamente em toda a Europa, pois se acreditava que o fogo promovia o
crescimento das plantações, aquecia, evitava calamidades com os incêndios, com as doenças e a bruxaria - "que não era menos temido deles".
Em
todas as culturas religiosas o fogo era considerado um elemento de transformador.
Os celtas, por exemplo, tinham o costume de comemorar o Beltane, festividade
realizada no início do verão do Hemisfério Norte em homenagem a Belenus, deus
da luz ou do fogo. Nessa ocasião, eles acendiam duas grandes colunas de fogo e faziam passar o
gado entre elas, a fim de purificá-los e preservá-los das pestes.
Do irlandês, Beal taine é um festival, tradicionalmente celebrado na primavera. Também conhecido como May Day, este foi um dos festivais mais importantes para o povo celta. Ele possuía um significado espiritual que comemorava a abundância da terra. Clique aqui para conhecer e comparar as duas festas religiosas.
Segundo Chevalier, essas fogueiras druídicas foram substituídas pela de São Patrício (o grande apóstolo missionário da Irlanda que, segundo a história, teria acendido na véspera da Páscoa uma fogueira em Uisnech, região central do país, em desafio às práticas pagãs da época): signo que marcou, decisivamente, o posterior prevalecimento do cristianismo.
Outra explicação, desta vez cristã, incluía Santa Isabel,
que teria mandado fazer uma grande fogueira, no alto de uma montanha, para
avisar Santa Maria, mãe de Jesus, que seu filho havia nascido. Essa forma de
comunicação entre Santa Isabel e Santa Maria seria repetida pelos fiéis numa
homenagem ao nascimento de São João.
Quanto às inúmeras brincadeiras e atividades realizadas ao
redor das fogueiras, duas se destacam: o costume de passar sob suas brasas e a
realização do ritual de compadre de fogueira. A primeira, "passar
fogueira" muito descrita pelos folcloristas, é um hábito corriqueiro no
Nordeste do Brasil, e consiste no gesto de coragem e ousadia, pois o festeiro
deve pisar com os pés descalços e atravessar um determinado percurso sobre as
brasas que foram retiradas da fogueira. A segunda prática, o "compadre de
fogueira" seria um ritual herdado dos costumes portugueses e exerce um
papel social destacado: o de criar laços afetivos e de amizade bastante sólidos
entre aqueles que desejam se tornar comadres e compadres.
Por fim, uma curiosidade deve ser destacada: o fogo, o
símbolo principal da festa, evoca São João, único santo cuja bandeira é
vermelha. Classificado por muitos folcloristas como "o santo do
fogo", várias lendas foram criadas em torno dele, como a descrita por Luís
Câmara Cascudo: "A São João não se dirigem promessas, pois ele dorme até o
dia do Juízo, e até lá não faz milagres. Se ele soubesse o dia em que é
celebrada a sua festa, o mundo todo seria destruído pelo fogo". Há a
variação de que, em 23 de junho, véspera do dia em que se comemora nascimento
de São João, Santa Isabel, sua mãe, deixa-o dormir toda a noite e não acorda,
pois foi se assim fizesse e ele descesse à terra para ver a alegria dos
festeiros, de tão feliz colocaria, sem querer fogo no mundo. Por isso, São João
só desperta no dia seguinte, 24 de junho. Essa lenda inspirou versos e cantigas
populares. A mais conhecida delas é "Capelinha de Melão":
"São João está dormindo
não acorda não!
Acordai, acordai,
acordai João!"
não acorda não!
Acordai, acordai,
acordai João!"
QUAIS OS ORIXÁS REPRESENTAM SANTO ANTÔNIO, SÃO JOÃO E SÃO PEDRO NA UMBANDA?
Como o fogo exerce um poder narrativo em todas as culturas religiosas,
temos uma última curiosidade. No sincretismo umbandista (dependendo da região do Brasil onde a Umbanda é praticada), os três santos católicos
são representados nos altares pelos orixás que dominam o elemento Fogo: Xangô por São João e São
Pedro; e Exu por Santo Antônio. Interessante não é?
Boa noite Mestre Pryon. Parabéns pelo excelente texto diverso que nos instrui, ao mesmo tempo nos faz bem. Gratidão pela lembrança. Um abraço
ResponderExcluirQuerida Marijara, fico muito feliz por conseguir corresponder suas expectativas! Gratidão pelo seu comentário. Namastê!
ExcluirAchei deveras interessante. Precisávamos de algo desta monta em nossas redes sociais. Muito grato.
ResponderExcluirMeu querido Irmão Lepê Correia, se depender de mim manteremos essa ideia viva! Gratidão!
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